Perdida no interior do Pará, a pequena Belterra guarda um traçado que remete às cidades dos Estados Unidos
Por Christiany Yamada
Igreja de Belterra: ponto de encontro de fiéis no pequeno núcleo urbano da Ford (Christiany Yamada/Arquivo pessoal)
No final dos anos 1920, Henry Ford enviou à Amazônia uma missão com a incumbência de construir uma cidade do zero. Pioneiro de uma indústria promissora, o inventor do Ford T estava atrás de matéria-prima para abastecer suas fábricas de pneus no Estados Unidos. O lugar escolhido ficava em uma área de um milhão de hectares no Vale do Rio Tapajós, no Pará, à primeira vista adequado para o cultivo de seringueiras, árvores de onde se extrai o látex, o cobiçado ouro branco que dá origem à borracha. Nascia assim Fordlândia.
No entanto, Ford não contava, depois de tudo pronto, com o surgimento de uma praga que inibiria as seringueiras de produzir a seiva, nem o fato de que os altos impostos no Brasil acabariam por inviabilizar a empreitada. Fordlândia foi abandonada e se tornou uma cidade fantasma, com pouco mais de mil habitantes.
Mas a história não termina aqui. Edsel Bryant Ford, filho do fundador, resolveu insistir com a produção na Amazônia e conseguiu convencer o pai a dar continuidade ao projeto, mas dessa vez com mais cautela. Ele contratou botânicos e especialistas para fazerem estudos e sondagens do solo, em uma região 300 quilômetros ao norte de Forldândia e a 20 quilômetros de um dos destinos turísticos mais lindos do Pará, Alter do Chão.
A “segunda Fordlândia” ganhou o nome de Belterra e tomei conhecimento de sua existência justamente quando estava de férias em Alter, no início de janeiro. A curiosidade pelo lugar ficou ainda maior quando li a notícia de que a Ford iria fechar suas fábricas no Brasil. Resolvi dar um tempo nos banhos de rio e fui até lá conhecer.
Aquela segunda investida da Ford na Amazônia teve início em 1934 e durou exatamente 10 anos. O fim se deu por uma conjunção de fatores: idade avançada de Henry Ford, morte do filho empreendedor, concorrência com o látex da Ásia e descoberta da borracha sintética.
O meu interesse na visita a Belterra estava no patrimônio arquitetônico, tão diferente do que eu tinha visto até então. A cidade, hoje com 20 mil habitantes, foi planejada seguindo o modelo norte-americano e continua bem preservada.
Casa na Vila dos Mensalistas: habitação para o segundo escalão da Ford
Casa na Vila dos Mensalistas: habitação para o segundo escalão da Ford (Christiany Yamada/Arquivo pessoal)
A primeira igreja do local, por exemplo, ainda tem a fachada intacta e foi a minha primeira parada assim que cheguei à cidade. Ao descer do carro para fotografá-la, fui abordada pelo pastor Ladilson Golçalves Moreira, que veio até mim se apresentar e se colocou à disposição para mostrar o interior do templo, antes mesmo de saber que eu era jornalista.
Atualmente, a igreja funciona como um depósito (e ainda guarda os bancos originais), enquanto os cultos acontecem em um edifício ao lado, mais novo. O pastor também me conta que há planos para transformar a construção em um cine-teatro.
Outro ponto de visitação, veja só, é uma caixa d’água instalada a pedido da Ford. Além de abastecer a cidade ainda hoje, o curioso nela é a sirene que servia para marcar o expediente dos trabalhadores: às 6h da manhã para acordar, às 7h para começar a lida, às 11h para a pausa do almoço, às 13h para retornar às atividades e às 16h para anunciar o fim do expediente. Isso acontece, pasme, até hoje. São mais de 80 anos de uma sirene que toca cinco vezes ao dia. Cheguei na cidade depois das 17h e não tive a “sorte” de ouvi-la.
Caixa d’água possui uma sirene que toca cinco vezes ao dia até hoje
Caixa d’água possui uma sirene que toca cinco vezes ao dia até hoje (Christiany Yamada/Arquivo pessoal)
Os bairros residenciais de Belterra estão divididos em Vila dos Americanos, Vila dos Mensalistas e Vila dos Operários. A primeira abrigava o mais alto escalão de funcionários da Ford, que vinham dos Estados Unidos e moravam nas casas maiores. Na dos Mensalistas, ligeiramente menores, morava o escalão intermediário. Já a Vila dos Operários, bem mais simples, era onde viviam amazônidas e nordestinos que trabalhavam na extração do látex.
As casas das vilas são habitadas e ainda seguem o padrão de cor (verde e branco) da época – as alterações nas fachadas são mínimas. Jorge Chagas mora com a família em um dos imóveis pertencentes à antiga Vila dos Americanos. O bem cuidado jardim é de dar inveja à mãe de plantas que habita em mim. Quando perguntei como era morar em uma casa de valor histórico, ele não hesitou: “sonho para outros, realidade para nós”.
Casa na Vila dos Americanos: o cuidado dos jardins tinham o incentivo de Mrs Ford
Casa na Vila dos Americanos: o cuidado dos jardins tinham o incentivo de Mrs Ford (Christiany Yamada/Arquivo pessoal)
Os belos jardins, aliás, se espalham por Belterra. As variadas e coloridas plantas estão presentes em várias casas de todas as vilas. Antônio Evandro Mota de Castro, que estuda a história de Belterra há mais de 10 anos e é uma referência na região, esclarece o motivo: a esposa de Henry Ford era uma entusiasta da jardinagem e promovia competições para eleger quem cultivava o jardim mais bonito.
Se a mulher de Ford de fato incentivou, foi através de algum emissário porque nem ela nem ninguém da família Ford jamais colocou os pés em Belterra. Nem mesmo Ford pai, dono da Casa número 1 da cidade. O imóvel chegou a hospedar Getúlio Vargas por uma noite e hoje está sendo restaurado para dar lugar a um centro gastronômico de comida regional.
Vargas estava em seu primeiro mandato quando esteve em Belterra, três anos antes de promulgar a primeira lei trabalhista. Durante a visita, participou de reuniões tanto com o alto escalão da Ford quanto com seringueiros. O então Presidente costumava andar sempre munido de um caderno, fazendo anotações sobre tudo o que ouvia.
As relações trabalhistas da indústria americana serviu de base para a criação da CLT. “Vargas não veio em visita de cortesia, veio para copiar o jeito que a Ford tratava seus trabalhadores”, completa o professor Mota de Castro.
Casa de Henry Ford abrigou Getúlio Vargas e deve sediar em breve um centro gastronômico
Casa de Henry Ford abrigou Getúlio Vargas e deve sediar em breve um centro gastronômico (Christiany Yamada/Arquivo pessoal)
Outro lugar que vale a visita é o Centro de Memória de Belterra, localizado dentro do Bosque das Seringueiras, que guarda árvores do período extrativista. O lugar possui um arquivo de fotos, vídeos e documentos originais. No momento, as visitas estão suspensas devido à pandemia e não há previsão de reabertura.
Talvez alguém possa estar se perguntando: vale a pena visitar Belterra? Vale muito por ser um destino-brinde. Você veio até Alter para conhecer praias de rio, paisagens das mais singulares do Brasil e, de quebra, conhece uma cidade improvável que conta um capítulo importante da nossa trôpega modernização. E Belterra tem paisagens incríveis como a praia do Pindobal e a Flona (Floresta Nacional do Tapajós), uma área de reserva fechada que atrai turistas por conta das suas trilhas. Uma delas, de 14 quilômetros, segue pela mata para chegar à “vovozona”, como foi apelidada uma árvore sumaúma milenar e de proporções transatlânticas.
Como chegar em Belterra
A cidade fica a 30 minutos de Alter do Chão. Turistas são raros na parte histórica e por isso os moradores adoram quando topam com forasteiros. Caso queira fazer uma visita guiada, entre em contato com o Centro de Atendimento ao Turista de Alter (93 99183-5423) ou com o professor Antônio Evandro Mota de Castro, que trabalha no Centro de Memória de Belterra e também oferece o serviço no fim de semana (93 99226 0572).
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