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Quem a Folha representa?

Folha e Gilmar Mendes: uma dobradinha contra a democracia

(*) Samuel Lima


Autoconsiderado o maior jornal diário do país, a Folha de S. Paulo prestou mais um relevante desserviço à democracia, em sua sanha pelo impeachment da presidente da República. Seu novo (velho) parceiro é o senhor Gilmar Mendes, reconhecido militante partidário com assento no Supremo Tribunal Federal (STF). As capas das edições nacional e São Paulo/DF de 22 de agosto de 2015 revelam essa intenção e gesto (observe a imagem das duas versões).



Com efeito, na edição nacional concluída às 21h22 do dia anterior, a Folha estampa como manchete: “Ministro do TSE pede ação contra campanha de Dilma”. Ainda que na linha fina revele o nome da fonte, essa manchete ganhou as redes sociais como mais uma “prova inconteste” de que até o Tribunal vê indícios de irregularidade nas contas de campanha que já aprovara, meses antes. No lide da chamada de capa a parceria ganha forma: “O ministro Gilmar Mendes, vice-presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinou que a Procuradoria-Geral da República apure eventuais crimes que possam motivar ação penal contra a campanha da presidente Dilma e o PT”.



É de conhecimento até do reino mineral, como diria o jornalista Mino Carta, as históricas relações de Mendes com o PSDB, governo ao qual serviu com Advogado-Geral da União e de lá foi indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao posto de ministro do STF. O ministro-militante partidário está à frente de interlocuções públicas pelo impeachment da presidente da República, como recente convescote com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ) e o deputado federal Paulinho da Força (SDD/SP). Então, sua iniciativa carece de legitimidade e está contaminada pela suspeição, desde a origem. Mas, para o jornal, nada disso tem a menor importância.


Pouco mais de 30 minutos (em sua home), o jornal faz uma retificação, sustentada por um novo texto na editoria Poder (com mais alguns parágrafos e o conteúdo do isento “despacho” do ministro). Agora, finalmente a manchete é transparente: “Gilmar Mendes pede ação contra a campanha de Dilma”. Não é a instituição TSE ou um órgão colegiado de controle e investigação, legitimamente constituído para tal, mas a ação política de um ministro cuja trajetória é, para dizer o mínimo, controversa. Mendes tem em seu currículo a concessão de duplo habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas, em julho de 2008, impedindo sua prisão por ocasião da Operação Satiagraha. À época, Mendes era presidente do Supremo Tribunal Federal.


A segunda capa, que logo também ficou disponibilizada como edição “nacional”, na home da Folha, como é de praxe nestas ocasiões, tem outra repercussão. Para leitores de manchetes, característica dos que participam de redes sociais, a verdade é aquela que primeiro chegou ao seu celular, tablet ou notebook. Em grupos de jornalistas e pesquisadores aos quais tenho acesso, por exemplo, foi isso que chegou.


Quem a Folha representa?


A observação recente que fiz sobre a mudança do rumo da prosa, do ponto de vista dos representantes dos capitais (industrial e financeiro, agora também reforçada pela entrevista de Roberto Setúbal, do Itaú Unibanco), em defesa da ordem democrática, não se reflete na Folha de S. Paulo. Lideranças e militantes dos movimentos sociais – sindicatos, entidades da sociedade civil etc. – também se manifestaram publicamente não em defesa do governo Dilma Rousseff, mas contra o golpe de qualquer natureza e a favor da democracia, ainda em processo de lapidação e construção nos últimos 30 anos.


A pergunta cabível, à luz dessa observação das duas versões de capa. É: com quem a Folha de S. Paulo dialoga? Quem são os “leitores” que o diário paulista diz realmente representar? A narrativa sobre a crise, tanto política quanto econômica, caminha para o esgotamento deixando um prejuízo à sociedade difícil de mensurar.


O jornalista Ricardo Melo, em texto publicado na edição de 24/08, intitulado “Os três patéticos” faz breve análise desse tipo de parceria da Folha com Aécio Neves, Gilmar Mendes e Eduardo Cunha, sempre na perspectiva de produzir desgaste político ao governo Dilma. Para Melo, “isolada de sua base histórica, a banca e o empresariado, à tropa do impeachment só resta a debandada” (Fonte: http://migre.me/riTUV). Faltou apenas o colunista incluir, para ser reto, o próprio jornal como parte dessa “tropa”.


Avaliando a atuação de Mendes, o jornalista é categórico: “Seu ajudante de ordens (do senador Aécio Neves, grifo meu), ou vice-versa, é o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Sintoma da fragilidade do equilíbrio de poderes vigente no Brasil, Mendes emite toda sorte de opiniões fora de autos. Muda de ideia conforme as conveniências. De tão tendencioso e parcial, seu comportamento público seria suficiente para impugná-lo como síndico de prédio. Na democracia à brasileira, pontifica como jurista na mais alta corte do país. Quem quiser que leve a sério” (Fonte cit.)


Do ponto de vista específico da informação que motivou as capas duplas, de sentido bem distinto, Ricardo Melo resgata a posição do ministro do STF/TSE: “Mendes endossou as contas da campanha da presidente eleita alguns meses atrás. Coisas do passado. Esqueçam o que ele votou. De repente, detectou problemas insanáveis na mesma contabilidade e ruge ameaçadoramente contra o que ele mesmo aprovou” (Fonte cit.).


A crise por que passa o Jornalismo não é apenas de modelo de negócios, resultante do impacto profundo dos novos hábitos de consumo de informações e notícias que o advento da internet possibilitou nos últimos 20 anos. Cada vez mais fica evidente que há uma deterioração do capital simbólico mais valioso da imprensa que é sua credibilidade e legitimidade social. Na semana passada, conversando com o dono da maior banca de jornais e revistas da Universidade de Brasília (UnB) ele revelou um exemplo perfeito: “Hoje fico apenas com dois exemplares da revista Veja e, por vezes, não consigo vender nenhum deles”. O protagonismo político antidemocrático da Folha de S. Paulo seria uma caminhada para a irrelevância? A ver as cenas dos próximos capítulos.


(*) Professor da Faculdade de Comunicação da UnB; pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).

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